26 agosto 2005

Urgência e languidez

Vivemos num tempo fugidio. Cheios de esperanças e medos recalcados.
Vivemos num sopro. Cheios de pressa e urgência.
Vivemos demais. Mas vivemos de menos.

Escreve-se demais.
Vê-se demais.
Fotografa-se demais.
Pergunta-se demais.
Racionaliza-se demais.

Nunca houve tantos comentadores, especialistas e contactos.
Nunca houve tantas ferramentas de comunicação que nos obrigam a escrever, a ler, a estar sempre contactável.

Se for possível quero paz e silêncio.
Quero não fazer parte deste tempo de urgência do registo.

Se for possível quero perder-me.
Andar longe ou perto ou nem sequer saber que passei por lá.

Não quero a urgência do registo.
Quero de volta a languidez de existir.

24 agosto 2005

O pensamento...

... mais fantástico que ouvi nos últimos meses:

"Todas as vidas têm destroços. O que é importante é não perder a capacidade de encaixar as peças de uma maneira diferente."

Brilhante.
OK, admito. A verdade é que estou completamente viciado na série "A educação de Max Bickford".
E nem que fosse apenas por poder ler este pensamento e saborear todos os reflexos do seu sentido, tinha valido a pena não perder um único episódio.

03 agosto 2005

Anteontem...

...aconteceu um daqueles momentos raros de harmonia em que tudo parece fazer sentido.
Era de noite. Num café cheio de gente. Eu no meio da gente. No meio do tédio rotineiro do descafeinado e dos jornais desportivos.
Um programa novo e desconhecido a passar na televisão. Tanto barulho que não se ouve o som.
Voz... li o nome. Da poesia de expressão Portuguesa. Serviço Público.
Não vou conseguir ouvir uma única palavra das muitas que, calculo, vão ser ditas.
Não há harmonia possível.

Legendas!

Afinal é mesmo serviço público!

Por entre imagens do Bairro Alto, de profissões e pessoas que conservam, orgulhosas, a sua designação e memória, desfilam as palavras. As imagens e palavras do lugar, das profissões, dos utensílios, das pessoas. De barbeiros, tesouras e barbearias. De vendedoras de fruta no meio da rua, de balanças com pesos de ferro oxidados e sacos de plástico verdes.
As palavras que são memórias de pessoas melancólicas por terem que recordar. As imagens que são lugares esbatidos por exisitirem sobretudo nas memórias do que lá se viveu.

O poema, as palavras que li estão transcritas em baixo.
O momento de harmonia fica só para mim.

Lisbon Revisited (1926)

"Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me náufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!..."


Álvaro de Campos