31 maio 2006

Para variar...

... tenho uma história para contar.
Não é boa nem é má. Nem apenas alegre ou triste. Como qualquer outra história, de resto.
Era uma vez um homem que, num dado momento da sua vida, se sentia vazio, sem objectivos, sem vontade, descrente.
Esse homem sentia-se culpado por não querer. Ou melhor, por não querer como todas as outras pessoas querem.
Para expiar essa culpa e para passar a querer o que queria de outra maneira, disse o que não queria.
E agora só queria não ter querido dizer o que queria dessa outra maneira. E agora não sabe nada. Como qualquer outro homem, não sabe, definitivamente, se quer o que quer, apenas sabe que não o quer assim.
E esse homem tem passado os seus dias a tentar decidir coisas, de indecisão em indecisão.
Não tem conseguido mas, ainda assim, decidiu não desistir.
Lamento informar mas não há qualquer moral nesta história.
Como não a há em qualquer outra história, ou vida, de resto.

28 maio 2006

Hoje...

... "O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

(...)

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser... "

Álvaro de Campos

As palavras têm poder. As palavras sentem. As palavras fazem sentir.
No entanto, no turbilhão do mundo que nos acontece a todo o momento, quase nunca tenho clarividência para as escolher devidamente.
Estou, de facto, bastante...
Não sei bem porquê, de quê ou por que razão.
Não me podia importar menos. Basta-me saber que estou.
E não há qualquer drama nisso. Amanhã é outro dia e eu também vou mudar.
Até amanhã então.

PS - Não tenho paciência para o fazer. Mas se tivesse, misturava a música do vídeo dos Air - All I need - apenas com uma narração deste poema de Álvaro de Campos.
Se tivesse paciência para o fazer e ainda para, depois, o ver e sonhar, se calhar amanhã acordaria menos cansado.



09 maio 2006

life: type real

Escrevo.
Escrevo a solidão? A beleza? A alegria? Mesmo o que devia ficar esquecido?
A escrita é um abandono, um passo em falso entre mim e a realidade, um acaso.
Escrevo a verdade? A mentira? Não, escrevo a vida.
A vida com olhos acima do céu, que não escapa às redes de malha curta de ter que a escrever.
Sempre que escrevo desisto.
E deixo-me, em pedaços, estilhaçado, no que escrevi.
E sigo neste movimento contínuo: de juntar os destroços em nova vida que vou voltar a escrever.
Escrevo a evolução? Sim, talvez. Com pesar e egoísmo.
As palavras são universais mas os destroços são os meus.
Mas as palavras que utilizo, para juntar os meus destroços, passam a ser só minhas.
Porque essas palavras, espartilhadas dos meus destroços, nada significam.
As palavras só são reais quando são construídas, destroçadas e reunidas outra vez.
As palavras apenas são ideias quando são vida.

Mas será que tudo se passa apenas assim?
Ou as palavras das vidas dos outros também são destroços das nossas?
É o mais belo poema que se pode escrever: o que ajuda os outros a reconhecer que muitos destroços são de todos:

"A poesia é o autêntico real absoluto.
Isto é o cerne da minha filosofia.
Quanto mais poético, mais verdadeiro."
Novalis

02 maio 2006

Jimi plays Bob Dylan and myself...

Tenho uma relação estranha com a música.
Quem me conhece sabe que a música está presente em todos os momentos da minha vida.
Era-me extremamente simples, por exemplo, fazer a banda sonora de tudo o que me lembro de ter vivido: todos os grandes - bons e maus - momentos da minha vida têm uma música qualquer associada.
E é por isso que a minha relação com a música é estranha. Porque nem sempre gosto de recordar, nem sempre quero criar motivos para fazê-lo. Ou seja, nem sempre me apetece ouvir música e criar potenciais futuros recalcamentos.

Quando recebi este link senti um arrepio. Eu explico: ainda existe, em casa dos meus pais, uma cassete VHS com este concerto, que gravei por volta de 1990.
Nesta música, de tanto a ouvir, o som já está adulterado, tipo 45rpm, e a imagem aos saltos.
A música é, como se sabe, imitável. Um bom executante, com o equipamento certo, conseguiria reproduzir esta actuação do Jimi Hendrix em Atlanta.
Mas a imagem, o feeling, a recordação, esses, são inimitáveis.
Do ponto de vista formal/técnico esta música -
"All along the watchtower" - é um marco: o solo, brilhante, a meio da música (considerado, por muita gente, como o melhor solo de guitarra de sempre numa actuação ao vivo), é histórico.
Do ponto de vista pessoal, a forma como ele se engana no início da música e diz, posteriormente e com maior das naturalidades "As I was saying...", diz muito de mim nessa altura da minha vida.

*sigh*

Fabricar este som, em 1970, apenas com uma guitarra, um baixo e bateria é único.
Ouvi-lo, como eu ouvi em 1990, em circunstâncias muito especiais foi também único para mim.
Voltar a ouvi-lo, em 2006, é como ver certas fotografias e cartas antigas: neste caso, um exercício de puro prazer.